quinta-feira, 7 de novembro de 2013

O Cubo Negro e as caligrafias em tom menor de Herê Fonseca



Ludmila Brandão
[caligrafias]
No extraordinário filme O livro de cabeceira de Peter Greenaway, Nagiko sai em busca de um escritor-calígrafo a quem pudesse oferecer o corpo como livro, a pele como página, e usufruir os prazeres estéticos simultâneos do texto e da caligrafia, seguidos dos prazeres do sexo. Essa conjunção encarnava, para Nagiko, a suprema perfeição. Logo compreendemos que ela tão somente visava performar, uma vez mais, a escritura ritual com que o amado pai lhe ungia, a cada um dos seus aniversários, invocando os princípios do mundo. O deslizar do pincel úmido sobre a pele fresca, o cheiro acre do nankin fundido ao calor do corpo próximo do pai, a escuta das palavras mágicas grafadas sobre seu rosto, sua nuca e o toque final em vermelho, com a ponta do indicador, sobre seus lábios: eis o ritornello que conferia a Nagiko o sentido de sua existência.
À morte do pai, instala-se a obsessão e o início da longa busca.
A história de Nagiko nos leva a pensar, a contrapelo da cosmogonia cristã, que o princípio não se deu com o verbo, mas com o gesto. E que o texto primeiro, muito antes de qualquer verbo tornar-se possível – mesmo os grunhidos de uma proto-fala −, terá sido aquilo que, de algum modo, se fez impressão de um gesto, seja como vestígio (índice), seja como traço, deliberadamente signo. O gesto impresso é então nosso primeiro texto: das pegadas da presa, habilmente “lidas” por nosso ancestral aos conjuntos de signos dos mais diversos sistemas lingüísticos atuais, longos e múltiplos caminhos se desenharam. 
Paralelamente às poéticas do texto (em prosa ou verso) vemos surgir poéticas do traço conhecidas como caligrafia, que compreende desde criações completamente utilitárias às obras maiores dessa arte onde a expressão abstrata pode adquirir mais importância que a legibilidade dos signos.   
Diferentemente das caligrafias chinesa, árabe ou japonesa que resistem como arte, a caligrafia no Ocidente entrou em declínio com a invenção da imprensa, em uma espécie de abdicação do traço como elemento do poema na poesia, deixando ao desenho e à pintura a exclusividade de sua exploração.
Por isso, por mais estranho que possa parecer, é um pintor (e não um escritor) que nos apresenta esta delicada exposição de caligrafias.


[o cubo negro]
Em uma das visitas que fiz à Herê Fonseca para conhecer sua produção, que inclui pinturas e objetos, fui apresentada aos seus cadernos de desenho. Um número espantoso (na escala dos milhares) de esboços em preto e branco, em pinceladas rápidas sobre papel sulfite, compõe isso que preferi tomar por cadernos de caligrafia. Como diz Wagner Barja no texto deste catálogo, “estas espécies de desenhos nunca são trazidas a público, eles ficam arquivados em pastas e permanecem numa região de limbo, excêntricos a toda produção visível do artista”.
Tais esboços, ao modo dos vocalizes para o cantor − que também os faz em privado − são exercícios do traço (ou do gesto que resulta em traços). É nessa repetição sem fim, e aparentemente sem propósito, que o calígrafo-pintor, como Nagiko, reencena sua busca obsessiva, à cata, talvez, do gesto/traço epifânico que tomará como assinatura.
Cada um dos despretensiosos desenhos de Herê Fonseca, feitos para não serem expostos, não poderiam, a rigor, serem tomados como obras em si e, daí não terem sido destacados individualmente. No entanto, a exposição conjunta dos esboços, ao modo Cubo Negro, além do perceptível valor como experimento, como propositor estético e não como obra (para lembrar HO), constitui uma preciosa compreensão/intuição do trabalho do artista, raramente oferecida ao público. É uma exposição que, a seu modo, se pretende metalingüística.
Em Cubo Negro, as formas precedem-nos na escuridão, pré-existem como virtualidade. Ao artista cabe o trabalho, necessariamente obsessivo e extenuante, de escavação de formas outras que venham a compor e reconfigurar nosso mundo em sua frágil e transitória ordem. Na escuridão, tateia, escava, descobre, colhe, escolhe e compõe formas que pretenderão dizer seu nome (como no ritual de Nagiko), como assinatura de um mundo singular.
Mas seria esta uma experiência exclusiva do artista? A escuridão não seria, acaso, nosso lugar comum? Não estamos todos à procura de formas que coloquem um pouco de ordem no caos que nos cerca e habita? Que nos conformem (e confortem)? Que nos permitam respirar? Que nos salvem da ameaçadora desrazão? Formas de estar no mundo, de pensar o mundo, de se relacionar, fazer, amar e resistir. Formas de ser livre, de ser leve, de ter, enfim, uma vida que não seja vida nua, que não seja zoé, uma vida que seja digna de ser vivida[i].




[i] “Os gregos não possuíam um termo único para exprimir o que nós queremos dizer com a palavra vida. Serviam-se de dois termos, semântica e morfologicamente distintos, ainda que reportáveis a um étimo comum: zoé, que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais, homens ou deuses) e bíos, que indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo.” Giorgio Agambén. Homo Sacer: O poder Soberano e a Vida Nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p.9.


Mágica da visão

Enock Sacramento 

Conheci Herê  Fonseca no final dos anos 90, na condição de membro da Comissão Julgadora do Mapa Cultural Paulista. O contato com o jovem artista foi breve, mas intenso. Seu interesse pelas questões relacionadas com a arte extrapolava os limites convencionais. Queria saber mais, questionar sobre critérios, sobre possibilidades do fazer artístico.  Lembro-me de ter-lhe dito que a arte não é o domínio do real, mas do possível, que ela não se refere ao que é, mas ao que pode ser. E que a missão do artista, na visão de Paul Klee, não é a reprodução da realidade, mas a produção de uma nova realidade, independente e autônoma.
Perdi, na sequência, contato pessoal com o artista, de quem me chegavam notícias, de quando em vez e por meios diversos, dando conta que ele continuava muito atuante em Piracicaba, onde participava dos eventos artísticos mais significativos da cidade e na qual realizava exposições individuais de peças tridimensionais, espécie de garatujas metálicas aéreas, sustentadas por fios presos ao teto, de esculturas espaciais, que se configuram como um desenho no espaço e que originam novas linhas ao serem projetadas como sombras nas paredes. O movimento provocado pelo vento ou pelo toque remete a um espetáculo mágico de matérias, luzes e sombras, sutil, harmonioso ou agitado em função de interferências suaves ou incisivas. Trabalhos nessa linha de pesquisa  constituem contribuição original de Herê na produção de uma nova realidade, a de seu universo artístico, que tem peso e leveza ao mesmo tempo, material e imaterial, e com a qual ele constrói uma poética próxima à da dança. Paralelamente, ele desenvolve uma outra série de pinturas e de trabalhos em que peças de arame são incorporadas a pinturas.
Imagino que Herê lembrou-se por acaso do crítico que com ele cruzou há mais de 10 anos em São Paulo. Em novembro de 2009, o Jornal da ABCA – Associação Brasileira de Críticos de Arte, em seu numero 22, publicou a notícia do lançamento de um livro de nossa autoria e, concomitantemente, uma consubstanciada matéria sobre a obra de Herê Fonseca, referenciado na exposição “Oscilações”, realizada no SESC Arsenal, de Cuiabá, redigida pela critica, professora e curadora Ludmila Brandão. Foi nesta ocasião que tive notícias mais recentes do artista, que ele mudou-se para Mato Grosso, onde vive e trabalha atualmente.
Agora, inesperadamente, sou convidado pelo artista, por intermédio da profa. Maria Thereza Azevedo, a redigir um texto sobre ele para a nova exposição que realiza no MACP: Cubo Negro.  Não poderia, de forma alguma, declinar-me da tarefa, mesmo não tendo visto a obra a vivo, como seria desejável.  Informações e imagens me foram enviadas. Desta feita, Herê mostra, no interior de um cubo, uma série de esboços em guache preto sobre papel branco, visíveis com o auxílio de lanternas penduradas no interior do espaço. A instalação sugere uma viagem às origens da criação, à morada das idéias que se transformam, através da sensibilidade e do gesto do artista, em linhas e manchas, signos e sinais. Herê, que em outros momentos desenhou no espaço, desenha agora no piso e nas paredes internas de um cubo, espécie de útero em que a obra de arte é gerada. Em ambos os casos, todavia, Herê pratica o que Merleau-Ponty denominaria de uma teoria mágica da visão.

Enock Sacramento

Membro da ABCA - Associação Brasileira de Críticos de Arte

Forma e escuridão


*Por Wagner Barja
Revelar o sentido da arte é tarefa difícil quando se traduzem estas revelações de dentro da própria obra.
 Herê Fonseca extrai da escuridão as imagens que vão revelar de dentro de um cubo negro, o amálgama de uma plástica que externa e formaliza sem recursos intermediários, a linguagem primitiva do desenho. 
São exibidos aqueles desenhos fluídicos e extremamente descomprometidos de um pretensioso e esmerado acabamento, expressivos devaneios, que todo artista vocacionado nesta linguagem pratica à revelia e, livremente os elabora sem muito planejamento.
Normalmente, estas espécies de desenhos nunca são trazidas a publico, eles ficam arquivados em pastas e permanecem numa região de limbo, excêntricos a toda produção visível do artista. Mas aqui, ao contrário do lugar comum do esquecimento e da invisibilidade, Herê teima em revelar e mostrar sem pudores, o que para o público ficaria invisível, Esta é uma parte do seu mundo inconsciente que num total exercício de liberdade é traduzida apropriadamente no interior de um obscuro cubo negro, substantivo geométrico, que envolve e protege a idéia que re-qualifica a exposição.
O artista recorre à metáfora do elemento “caixa preta” para exibir, ou melhor, externar seu inconsciente através de desenhos monocromáticos.
Numa possível retro- leitura da “caverna de Platão” provoca-se o visitante a fazer uso de lanternas, para poder ver as imagens.  Há de se ter algum esforço para enxergar, para se perceber e assimilar o conjunto gráfico no interior do cubo/caverna. É necessário também alguma dose de cegueira para se entender este  insensato mundo.


Herê Fonseca é um intuitivo, em arte, raramente planeja o que faz, pois há em sua mente um arquivo dinâmico, sempre a funcionar, num constante acender e apagar de lanternas para o que deseja iluminar e comunicar, sempre por meio do traço livre e despretensioso do desenho.
Curiosamente há neste recente projeto de Herê Fonseca um diferenciado planejamento, onde a estrutura geométrica do cubo negro é utilizada para abrigar e reafirmar a livre e informal expressão de linguagem do desenho, mas também deixa um pouco à deriva o percurso do visitante. Como se quisesse o artista, revelar também o complexo e rico mecanismo de sua mente e, por inteiro, nos permitir penetrar no espaço de sua personalidade.


* Wagner Barja – é artista plástico, Mestre em Arte e Tecnologia das Imagens pela Universidade de Brasilia – Notório Saber em Plástica – História e Teoria da Arte – Arte-Educação, conferido pelo Conselho Superior de Educação / MEC.  Curador e crítico. Atualmente dirige o Museu Nacional do Conjunto Cultural da República, em Brasília