Ludmila Brandão
[caligrafias]
No extraordinário filme
O livro de cabeceira de Peter
Greenaway, Nagiko sai em busca de um escritor-calígrafo a quem pudesse oferecer
o corpo como livro, a pele como página, e usufruir os prazeres estéticos
simultâneos do texto e da caligrafia, seguidos dos prazeres do sexo. Essa
conjunção encarnava, para Nagiko, a suprema perfeição. Logo compreendemos que ela
tão somente visava performar, uma vez mais, a escritura ritual com que o amado
pai lhe ungia, a cada um dos seus aniversários, invocando os princípios do
mundo. O deslizar do pincel úmido sobre a pele fresca, o cheiro acre do nankin fundido
ao calor do corpo próximo do pai, a escuta das palavras mágicas grafadas sobre
seu rosto, sua nuca e o toque final em vermelho, com a ponta do indicador,
sobre seus lábios: eis o ritornello que conferia a Nagiko o sentido de sua
existência.
À morte do pai, instala-se
a obsessão e o início da longa busca.
A história de Nagiko nos
leva a pensar, a contrapelo da cosmogonia cristã, que o princípio não se deu
com o verbo, mas com o gesto. E que o texto primeiro, muito antes de qualquer
verbo tornar-se possível – mesmo os grunhidos de uma proto-fala −, terá sido aquilo
que, de algum modo, se fez impressão de um gesto, seja como vestígio (índice),
seja como traço, deliberadamente signo. O gesto impresso é então nosso primeiro
texto: das pegadas da presa, habilmente “lidas” por nosso ancestral aos
conjuntos de signos dos mais diversos sistemas lingüísticos atuais, longos e
múltiplos caminhos se desenharam.
Paralelamente às
poéticas do texto (em prosa ou verso) vemos surgir poéticas do traço conhecidas
como caligrafia, que compreende desde
criações completamente utilitárias às obras maiores dessa arte onde a expressão
abstrata pode adquirir mais importância que a legibilidade dos signos.
Diferentemente das
caligrafias chinesa, árabe ou japonesa que resistem como arte, a caligrafia no
Ocidente entrou em declínio com a invenção da imprensa, em uma espécie de
abdicação do traço como elemento do poema na poesia, deixando ao desenho e à
pintura a exclusividade de sua exploração.
Por isso, por mais
estranho que possa parecer, é um pintor (e não um escritor) que nos apresenta
esta delicada exposição de caligrafias.
[o cubo negro]
Em uma das visitas que
fiz à Herê Fonseca para conhecer sua produção, que inclui pinturas e objetos,
fui apresentada aos seus cadernos de desenho. Um número espantoso (na escala
dos milhares) de esboços em preto e branco, em pinceladas rápidas sobre papel
sulfite, compõe isso que preferi tomar por cadernos de caligrafia. Como diz
Wagner Barja no texto deste catálogo, “estas espécies de desenhos nunca são
trazidas a público, eles ficam arquivados em pastas e permanecem numa região de
limbo, excêntricos a toda produção visível do artista”.
Tais esboços, ao modo
dos vocalizes para o cantor − que também os faz em privado − são exercícios do
traço (ou do gesto que resulta em traços). É nessa repetição sem fim, e
aparentemente sem propósito, que o calígrafo-pintor, como Nagiko, reencena sua
busca obsessiva, à cata, talvez, do gesto/traço epifânico que tomará como assinatura.
Cada um dos
despretensiosos desenhos de Herê Fonseca, feitos para não serem expostos, não
poderiam, a rigor, serem tomados como obras em si e, daí não terem sido destacados
individualmente. No entanto, a exposição conjunta dos esboços, ao modo Cubo
Negro, além do perceptível valor como experimento, como propositor estético e
não como obra (para lembrar HO), constitui uma preciosa compreensão/intuição do
trabalho do artista, raramente oferecida ao público. É uma exposição que, a seu
modo, se pretende metalingüística.
Em Cubo Negro, as
formas precedem-nos na escuridão, pré-existem como virtualidade. Ao artista
cabe o trabalho, necessariamente obsessivo e extenuante, de escavação de formas
outras que venham a compor e reconfigurar nosso mundo em sua frágil e
transitória ordem. Na escuridão, tateia, escava, descobre, colhe, escolhe e
compõe formas que pretenderão dizer seu nome (como no ritual de Nagiko), como
assinatura de um mundo singular.
Mas seria esta uma
experiência exclusiva do artista? A escuridão não seria, acaso, nosso lugar
comum? Não estamos todos à procura de formas que coloquem um pouco de ordem no
caos que nos cerca e habita? Que nos conformem (e confortem)? Que nos permitam
respirar? Que nos salvem da ameaçadora desrazão? Formas de estar no mundo, de pensar
o mundo, de se relacionar, fazer, amar e resistir. Formas de ser livre, de ser
leve, de ter, enfim, uma vida que não seja vida nua, que não seja zoé, uma vida que seja digna de ser
vivida[i].
[i]
“Os gregos não possuíam um termo único para exprimir o que nós queremos dizer
com a palavra vida. Serviam-se de dois termos, semântica e morfologicamente
distintos, ainda que reportáveis a um étimo comum: zoé, que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres
vivos (animais, homens ou deuses) e bíos,
que indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um
grupo.” Giorgio Agambén. Homo Sacer: O
poder Soberano e a Vida Nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p.9.
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